A Nudez Sacra


Dürer’s Four Witches by Albrecht Dürer


A Nudez Sacra é um tema um tanto ou quanto delicado, que pode até levar o leitor por caminhos alheios à Bruxaria, e por isso este ensaio não tem como propósito esgotar o tema da nudez, podendo assim estimular o leitor a desenvolver autonomamente a importância da nudez no seio da Velha Arte e do Paganismo em geral.
Desde a cristianização na Europa que a nudez ganhou um papel de pecado e ultraje na sociedade, e dessa forma perderam-se alguns valores sagrados à Velha Arte, como a nudez ritual, que ainda hoje é vista pela sociedade dita civilizada como uma inversão ao que deve ser correcto e aceitável no meio mundano. Essa aversão pela nudez que a igreja católica impingiu na sociedade prevaleceu até aos dias de hoje como um tabu, pois durante 2000 anos o pensamento do ser humano reformatou-se de tal forma às condições do cristianismo, que o que era natural em tempos arcaicos passou a ser pecado em tempos modernos. Denota-se nesta imposição da igreja a intenção de sobrevalorizar o acto humano ao acto animal, como se o acto animal não fosse digno de uma sociedade. Desta forma, perderam-se então valores culturais vincados nas civilizações pré-cristãs, e criou-se, assim, a noção de pecado.
Em tempos arcaicos a nudez era uma forma de estar perante os Deuses, os Antepassados, os Guardiões, a Natureza, e ritualizar nu era um acto natural que se tornava importante no processo mágico e iniciático. Em diferentes culturas e civilizações antigas existiam ligeiras diferenças na forma como era entendida a nudez, mas os pontos em comum não deixam dúvidas de que a nudez era um elemento sagrado no caminho dos iniciados.
A sacralidade do corpo tornou-se importante para os povos xamânicos, já que era a partir do estado mais primitivo (estado puramente animal) que os xamãs podiam entrar em estado alterado de consciência, e com isso atingir melhores resultados nas suas práticas mágicas e feiticeiras. Com todo o legado que o Xamanismo Europeu deixou à Bruxaria, podemos entender que também na Velha Arte a nudez é sagrada, e o facto de se estar perante a Natureza despido do conforto das roupas da vida mundana e sem qualquer concepção pecaminosa imposta pela sociedade moderna, deixando o ego social tanto quanto possível na berma das estradas que dão para os bosques, a bruxa consegue assim transcender aos mundos supra-sensíveis, para que possa desenvolver o seu trabalho mágico. Esta nudez não deve ser sentida como vergonha perante um conventículo, uma vez que este deve ser alheio à estética e noções sobre o belo oriundas do seio da sociedade capitalizada, tão opostas à recepção das propriedades iniciáticas que se pretendem obter, pois a simples nudez não fará o estado animal da bruxa, mas sim a união entre a nudez e o despreendimento das concepções sociais, que farão com que a bruxa entre em estado alterado de consciência, entre o corpo e o espírito. Quando a bruxa não pretende ritualizar nua, por questões climatéricas ou até mesmo por questões mais pessoais, ela usa capas ou trajes que não está habituada a usar na vida mundana, para que, ainda assim, possa despir-se do conforto materialista do mundo moderno, e deixar que entrem em si as forças numinosas que a transfiguram. O acto de despir o corpo das vestes utilitárias, permite-nos um aumento do sentimento de vulnerabilidade, abrindo-nos o corpo para o confronto com o eu e com os génios, por forma a vincular na carne o mesmo fenómeno iniciático que se dá no espírito e na consciência.
A nudez não é apenas importante pelas características animais que encaramos num círculo, mas é também importante o próprio corpo que é entendido como o templo da peregrinação iniciática e mágica, pois é a partir do próprio corpo que podemos entender a ligação entre nós próprios e os Deuses. Como os Deuses não são exteriores a nós nem nós exteriores aos Deuses, somos parte Deles e Eles de nós, então podemos perceber a importância do nosso corpo como templo do nosso caminho na Arte, pois é a partir dele, e sendo simétrico ao cosmos, natureza e submundo, que conhecemos os mundos invisíveis aos olhos mundanos, e por sua vez praticamos magia. Em diferentes partes do nosso corpo podemos ver representadas as diferentes formas do Deus e da Deusa, conseguindo perceber a simbologia ou até mesmo o poder que emana de cada elemento corpóreo aquando o trabalho mágico. A cabeça, a zona do coração, as mãos, os órgãos sexuais, os pés, etc., tudo isso recebe e transmite energia no momento do trabalho mágico, tendo em conta, naturalmente, o objectivo de cada trabalho, e é também por isso que nas viagens extáticas e visionárias ao Submundo, o Sabat das Bruxas, são usados unguentos com propriedades psicotrópicas que servem para untar diferentes partes do corpo, servindo de ajuda para se atingir um estado alterado de consciência. É também no corpo que o neófito sente as dores da iniciação, por via dos Deuses, dos Antepassados, dos Guardiões, enfim, da Natureza.
O corpo e a nudez são sagrados ao caminhante da noite, para com eles poder evoluir e desenvolver o seu trabalho mágico. É com a sacralidade do corpo e da nudez que conhecemos os mundos para além do físico, que conhecemos os mistérios mais intrínsecos à alma e espírito humanos, que presenciamos as acções da Natureza e que caminhamos nos sinuosos trilhos da Iniciação, porque é pelo acto de despir a casca mundana, que nos transfiguramos e ascendemos ao patamar mais profundo da nossa própria existência colectiva.

Texto por Carneo
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