Magic Circle, de John William Waterhouse, 1886
Símbolo que ainda hoje está bastante sedimentado no imaginário colectivo quase sempre que a imagem da bruxa do folclore é evocada, acompanhando a figura velha e sinistra de verruga no nariz e contendo preparados particularmente estranhos. Actualmente é munido de um grande pragmatismo a nível mágico e é também um dos instrumentos com maior e mais profunda carga simbólica que lhe veste a sua forma sugestiva e estrutura metálica e aparece desde as narrações gregas sobre Medeia, as quais John Waterhouse pintou um quadro desta personagem ao lado de um caldeirão enquanto talha um círculo (ver imagem), até à lenda mitológica já mais tardia do Caldeirão de Cerridwen.
Pensadores na área sugerem que o Caldeirão nem sempre tenha sido utilizado na Arte, sendo apenas algo muito frequente em todas as casas pois serviria para se cozinharem os alimentos, sendo assim destinados à vida doméstica pura e simples. Todavia, se reflectirmos sobre isto, faz sentido considerarmos que quer fossem poções com pompa e circunstância quer preparados medicinais caseiros, ambos feitos à base dos procedimentos do herbalismo, seria possível que a sua utilização com fins mágicos, e principalmente de curandeirismo, fossem bem reais, pelo menos desde a vulgarização deste objecto em todas (ou quase todas) as casas da Antiguidade.
Esta alfaia é, em boa verdade, um símbolo profundo que apresenta uma vasta panóplia de alusões metafóricas a diferentes crenças presentes na bruxaria visionaria. É um objecto litúrgico que está associado ao elemento água segundo paradigmas/ propostas eclécticas new age, porém se sobre ele meditarmos mais profundamente vamos percebê-lo de forma muito mais abrangente e enigmática. Entendendo-o como a metáfora que abarca a morte e renascimento iniciáticos, seja pela alusão ao ventre da Deusa Mãe na Wicca Tradicional ou como portal para o Submundo na Bruxaria Tradicional, ele é o receptáculo alquímico das transmutações, as quais, tal como a Terra e o seu corpo estrelar, tem a capacidade de abarcar todos os elementos em uníssono e perfeita harmonia para induzir as transfigurações iniciáticas ao neófito. Neste sentido, o caldeirão como metáfora para a alquimia dos quatro elementos, é um impulsionador da transformação iniciática, o receptáculo que reúne as contrapartes etéricas dos elementos e que os funde de tal forma que produz ou permite a obtenção/ o alcance da quintessência. Ao reflectirmos sobre isto novas portas se abrem, permitindo assim um desmistificar da simplicidade redutória com que as correntes new age dirigidas às massas nos minam: sendo que o caldeirão propícia pela necessidade do fogo para funcionar, a presença da água para ocorrer a fervura, dos alimentos (terra), por exemplo, ou até do próprio ferro extraído da terra e que lhe dá forma e pelo vapor da água (ar) que daí advém, a elevação metafórica do Eu transfigurado, ele é sentido como um portal para o Submundo dos Velhos Deuses, como um meio para a elevação da alma! Assim, será legítimo não atribuir o caldeirão exclusivamente à correspondência com o elemento água, pois os restantes também fazem cenário na sua utilização e simbologia. Porém, considerando a sua atribuição à água etérica, ele também nos lembra, oficialmente, o estado de dissolução que ocorre no Quadrante Oeste, do Sol que morre no oceano, fundindo-se com as suas profundezas e morrendo metaforicamente, no Outono, para atravessar o caminho para o mundo ctónico e iniciático dos Deuses Arcaicos, entrando no estado de morte transfiguratória no Inverno para renascer na Primavera, tal como o maior esoterista português, Gilberto de Lascariz, propõe. Será desta metaforização do que ocorre na Terra no sentido esotérico com o que ocorre no interior do iniciado que o sentido do caldeirão se torna mais evidente: ele é a própria carnalidade no mundo médio do neófito que se transcende às elevações seja do mundo cósmico ou do mundo inferior.
Esta linha permite-nos perceber que, afinal, seja na Wicca Tradicional seja na Bruxaria Arcaica e Tradicional, o caldeirão é sempre o instrumento que relembra da morte do Eu Social para renascer num novo Eu, transfigurado e impulsionado pelas próprias Divindades e Espíritos Tutelares, permitindo o ressurgimento dos atavismos que às diferentes tradições da Arte são tão caros! Para demonstrar que mesmo na Bruxaria Tradicional o caldeirão apresenta tais alusões, ao contrário do que muitos pensam pois crêem que nada tem que ver com a abordagem da Wicca de Gardner, cito, convictamente, palavras de uma obra do Bruxo Tradicional, Nigel Jackson, traduzida e publicada em Portugal pela editora Zéfiro, O Chamado dos Velhos Deuses: “(…) é o recipiente de todo o nutrimento, fonte de todo o nascimento, regeneração e transformação. É simultaneamente o ventre da mãe e o poço que restaura os mortos à vida. (…) Na Bruxaria, o caldeirão é o emblema do renascimento, da abundância e do conhecimento iniciático, a fonte da sabedoria.” (2008). Isto deixa claramente a necessidade de reflexão iniciática e transfiguradora e não uma abordagem meramente superficial com base muito mais nas diferenças do que nas semelhanças entre as Tradições que tantos praticantes teimam em basear-se.
Nesta dinâmica de reflexão percebemos que o caldeirão enquanto receptáculo alquimicamente óptimo, é também uma representação dos orifícios presentes sejam no Sabugueiro que, na sua sinuosa colina (oca) se impõe assinalando a entrada para o Submundo, seja das paisagens naturais utilizadas como “locais-ponte” para o mundo ctónico dos Antepassados da Arte. Esta é a razão pela qual, em algumas Tradições, o caldeirão é colocado a Norte do Círculo, juntamente com a Vara Bifurcada, para lembrar através destes emblemáticos objectos litúrgicos, as jornadas xamânicas extáticas e visionárias ao mundo de Elphame! Dito isto, também se torna mais simples ainda perceber qual a razão das bruxas o utilizarem como um meio para a elevação da consciência, obtendo visões que eram reflectidas no espelho de água criado no caldeirão.
Este objecto pleno de simbolismo na Arte, aparece também associado à forja que os ferreiros se serviam para criar, pelo Fogo, e através da inspiração e do sopro da vida, os instrumentos que proporcionaram as práticas Feiticeiras – isto remete, igualmente, para a questão da denominação dos caminhos da Bruxaria como Arte. Também vem lembrar dos ciganos que teriam sido os errantes marginais que têm a fama de terem fundido várias práticas de Feitiçaria às práticas Europeias e que Charles Leland apresenta, e que se crê cujas actividades tenham também passado pelo fabrico destes objectos. Possivelmente, por se terem sentido semelhantes, pela sua marginalidade e práticas vivenciais nómadas, a Caim, eles acabam por estar ligados, de uma forma ou de outra, a este conjunto de ideias-básicas que tenho vindo a apresentar neste texto, ou pelo menos neste parágrafo. Nesta lógica associativa, o caldeirão vem lembrar-nos do mito de Caim, aquele que aparece em muitas Tradições embebido nas alusões ao sangue-bruxo como sendo o primeiro Portador da Marca, como sendo o Primeiro de sangue-bruxo, seja na mitologia associada à queda de Lúcifer, seja nas narrativas de Enoque sobre os Anjos Marginais que desceram à Terra e que impulsionaram na humanidade, através da fecundação das mulheres cujos descendentes deste acto teriam sido os Gigantes (na verdade portadores do conhecimento da Luz Divina), a evolução do Homem pelo conhecimento Iniciático e Visionário.
Quero deixar claro, desta forma, que é com o aprofundamento das reflexões sobre as Alfaias e, neste caso específico, do caldeirão, que algumas portas do entendimento sobre a Arte num contexto sério, iniciático e profícuo poderão ser abertas.
Que o adepto possa entender, através da familiarização com esta alfaia, um pouco mais sobre os sinuosos caminhos das encruzilhadas da Arte!
Texto por Ignis Spiritum
Texto por Ignis Spiritum