Ética Ecológica, Moralidade e Lei Tríplice: A desconstrução da Wicca das Massas

Manuscrito de Gerald Gardner


             Entre o fim do séc. XIX e os anos 40 do séc. XX, foram sendo descobertos artefactos que demonstravam a predominância do género feminino em sociedades arcaicas como sacerdotisas e curandeiras, teorias essas que viriam a acompanhar a emergência do Feminismo e que viriam a fundamentar a possibilidade desses papéis nas mulheres. Aliado a isto, o neo-paganismo (essencialmente a Wicca) que engordava na visibilidade perante o público, tinha vindo a demonstrar, igualmente, um culto matriarcal da Deusa-Mãe, apesar das inúmeras e vãs tentativas de contra-balançar justamente o princípio feminino e o princípio masculino. Na verdade, isto sentiu-se maioritariamente no público juvenil americano que ansiava pela adesão a movimentos de contracultura, materializando-se, como explicarei mais à frente, num culto com preocupações ecológicas, e abandonando as características inciáticas, mistéricas e fechadas, para se reformular à luz de uma religiosidade civil e aberta. Esta ramificação da Wicca Tradicional, chamada actualmente de Wicca Eclética, teve como mola propulsora a publicação de The Spiral Dance de Starhawk, em 1979. 
             Foram as descobertas arqueológicas que mencionei anteriormente, o feminismo radical das mulheres que procuravam serem auto-suficientes numa sociedade maioritariamente machista e os movimentos políticos de Esquerda, típicos da década de 70, que essencialmente despoletaram os movimentos de neo-paganismo superficial, transpondo, como disse, uma Via Iniciática para uma religiosidade aberta. Com isto percebemos, então, que a escolha das feministas na designação de bruxa lhes conferia o que procuravam: a corroboração de uma herança por justiça da velha sabedoria assente nos artefactos descobertos, adicionando-lhes carisma, independência e sabedoria, todos estes atributos conjugados com as suas premissas políticas de Esquerda no “combate aos homens”, reclamando os seus direitos de igualdade social. Toda esta conjuntura sofreu amplificação junto das camadas societais pela adição da ética ecológica no sistema mágico-religioso do neo-paganismo. A este movimento iniciado e liderado por Starhawk chamou-se Reclaiming pelas razões que indiquei.
O que devemos ter em conta é o despertar, após os anos hippies e tudo o que trouxeram e que de alguma forma ruiu pelo utopismo irrealista, que uma nova geração “acordara” para os problemas no mundo, e começava a lutar por e com valores ambientalistas, com uma forte atitude política subjacente e um almejar de uma religião que fosse contra a cultura predominante (Cristianismo). Como penso que é evidente, o livro de Strawhawk traz esta possibilidade da Wicca se reificar neste mundo constituído grande parte por jovens, com uma atitude de maior responsabilidade face aos problemas vividos na época, pois a autora ensina que tornar-se bruxa implica uma nova responsabilidade ética pela Terra, bem como a defesa activa do ambiente e das espécies. Daqui podemos perceber então que a Bruxaria e a Ecologia se fundem num aspecto ainda maior, e em torno da Deusa-Mãe, acabando por desfasar a importância do aspecto masculino, mistérico e iniciático da Wicca de Gardner.
Ainda assim convém frisar que não é, de todo, errada a ideia da Ética Ecológica, pois vivemos num mundo ameaçado pela poluição que nós próprios fazemos, daí que a Ecologia no movimento new age tenha servido certa importância, pelo menos na medida em que tenta mediar e equilibrar erros que a sociedade capitalista e industrializada produz.
Contudo, com a mencionada atitude geracional de se estabelecer limites nas diversas áreas do viver, e abraçado a ética numa lógica de se tentar controlar os objectivos em que se acreditava, acaba por se construir uma plataforma moral, que foi sendo transposta, paulatinamente, para os caminhos Iniciáticos, nomeadamente o da Wicca que é o que dá corpo e forma a este texto.  Esta concepção de Ética e Moral, não necessariamente ecológicas mas também nas dimensões mais pessoais ou em contexto de interacção, levantam outro tipo de questões, e implicam uma distinção entre a noção de Bruxa e a noção de Feiticeira, entre um caminho iniciático e uma religião. Parece-me, antes de mais, evidente que a ética é uma forma de se manter a coesão grupal dentro de uma sociedade, isto é, através das normas e regras instituídas, assentes sempre ou quase sempre em matrizes éticas, consegue-se uma solidariedade social que cimenta a união entre os diferentes grupos e instituições sociais. Neste sentido é fácil percebermos, se sobre o assunto reflectirmos, que a ética e a moral são construções em sociedade que possibilitam e impulsionam o “bem-viver” dentro da estrutura, muitas vezes oriundas de formas de religiosidade ou mesmo de religiões instituídas, legitimadas pela socialização, e que quando transpostas ou negligenciadas, a sociedade responde com a aplicação de sanções, seja sob a forma de estigma, castigos legitimados ou simbólicos. Tudo isto é compreendido se mantivermos em linha de conta que esta é a implicação de viver em sociedade, independentemente da camada correspondente na pirâmide hierárquica. Desta forma nasce a ética na magia! Mas, para aprofundar este ensaio e delimitarmos ainda melhor a linha condutora do mesmo, passamos à distinção de ambas as intervenientes: ser Feiticeira é, então, servir-se do uso da magia para se obterem determinados objectivos, sempre sob alguma matriz religiosa e com forte crença na exterioridade Divina, isto é, a feiticeira vive na sociedade, faz parte da estrutura e mantém as suas crenças no que é produzido em sociedade, maioritariamente pelas próprias religiões. É na constante presença de um cenário religioso dotado de simpatias, ritos e/ ou oferendas, e que, note-se, é presente em todas as religiões, que a Feiticeira se constrói. Evidentemente que esta pode ter igualmente uma "ausência" de ética, ou uma ética individualizada, mas neste sentido, o que a diferencia da Bruxa é, de facto, uma ética que ou se constrói por si ou que vai ao encontro da ética religiosa e/ ou  social, ao invés de ser ditada pelo percurso extático e visionário que se dá no caminho da Bruxa. Por outro lado, a Bruxa, e tentando apenas dar breves pinceladas por forma a não esgotar o tema que tem originado controvérsia e que é dotado de uma complexidade inexorável, é aquela que deambula entre o mundo Solar da sociedade em que vive e os diferentes planos de existência, a nível intimista, iniciático e mistérico. É a mulher/ homem de ofício que vivem no mundo mas conhecem mais além dele, é a sombra que cruza os caminhos diferentes, é a que vive com um pé na sociedade e outro em diferentes planos de existência, aquela que eleva a consciência junto do Axis Mundi, a alma que se aproxima do “asselvajamento religioso”, pela busca do seu Eu Numinoso não na luz Solar da Sociedade cientifista e objectiva, mas sim na luz difusa da Lua que mergulha o que existe na Luz Primordial. A Bruxa não procura um código de ética ao qual obedecer, pois a busca da gnose, da sabedoria, são o que ditará o seu próprio percurso nos trilhos sinuosos da Arte.
Assim, compreendemos que a Bruxa não obedece a códigos morais, pois enquanto construções sociais, eles são desprovidos de evolução espiritual, ao contrário da feiticeira. Em suma, e para colmatar a diferenciação entre estas duas figuras, podemos afirmar que a Bruxa é tanto feiticeira pela produção de encantamentos e rituais como Xamã na medida em que, através do Axis Mundi, e da elevação de consciência, flui pelos vários planos de existência, e a Feiticeira é a mulher de sabedoria que conhece as características, capacidades e poderes dos materiais de que se serve para a sua magia.
Após explorarmos estas questões, vamos perceber como é que na Wicca existe um código ético e moral de não se servir do mal e nem se interferir nas vidas alheias.
Foi a partir dos anos 70, e sob a influência do movimento ecológico na Wicca Ecléctica americana que emerge a Rede Wiccan, com o intuito de parecer um texto arcaico, inventado por Doreen Valiente após o seu conflito com Gardner e que diz: “Oito Palavras na lei Wiccan se deve respeitar: sem nenhum mal causar, faça o que desejar”, algo semelhante ao do pai da Wicca (“Faz o que quiseres desde que não ofendas ninguém!”). Contudo, existe uma grande diferença: Doreen passa a sua tónica para a totalidade das criaturas, para o “nada”, ao contrário de Gardner que apenas se refere a “ninguém”, ou seja, ela abrange não só o ser humano, mas também todas as criaturas. Esta é, indubitavelmente, uma surpreendente invenção de comportamento ético e moralista! Podemos ainda, para abrir mais portas de reflexão ao tema, mencionar a realidade da Bruxaria Tradicional, onde a ética apenas pertence ao coventículo que o indivíduo se insere, numa lógica corporativista e de índole iniciática, intra-grupal, grande parte das vezes até ditadas pelo Espírito Tutelar que guia, oriente e instrui os iniciados, e não a um código global de limitação comportamental originado no seio da própria sociedade.
Foi desta forma que se criou, na Wicca que hoje está ao alcance das massas, a limitação comportamental por parte dos seus praticantes. É assente num código de moral ético com fundamentos e bases sociais que a Lei Tríplice emerge, sendo, em boa verdade, uma invenção infundada e sem aplicabilidade prática alguma! Não é de justiça o Wiccan que se auto-nomear Bruxo obedecer a uma restrição comportamental de raízes ideológicas com origem no pensamento social ainda com marcas vigentes e concretas de puritanismo. Para que justiça se fizesse, designar-se-iam Feiticeiros… Mas não creio que a distinção que exploro aqui seja válida para todos os praticantes dos diferentes caminhos da(s) Arte(s). Todavia, e para concluir as palavras que tenho vindo a articular ao longo deste fio condutor do meu próprio raciocínio, e que tem por base não apenas o legado lusitano dos nossos Antepassados, mas também a marca de toda a Península Ibérica, é legítimo afirmar que a moral e/ ou a ética que possuem origem na sociedade cristã em que vivemos, cujos conceitos de bem e de mal dela derivam, não são adequadas ao neófito que se inserir e almejar alcançar o conhecimento iniciático, num percurso mistérico, sentido não apenas na alma e espírito mas também na sua própria carne, pois é através da imersão no seu próprio interior, em osmose com os Genni Locci, os espíritos familiares e o Espírito Tutelar que desbrava as encruzilhadas dos caminhos da noite, criando a sua própria ética, articulada numa lógica de evolução espiritual, e à luz da chama que o Grande Bode traz entre os Cornos.

         Texto por Ignis Spiritum
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